Recolhimento

A roda do ano volta a girar e é tempo de voltar a escrever-vos.

Numa altura em que as comemorações do Halloween parecem teimar em sobrepor-se a tantas tradições antigas, a escolha do tema do meu segundo post foi ficando cada vez mais clara: o que olhar e sentir para além do Halloween? De que modo a musicoterapia e o meu MindfulSound vos poderia inspirar para celebrarem mais profundamente este final de Outubro?

Vamos mergulhar nas tradições desta época e tentar olhar para os próximos dias para além das doçuras e travessuras? Vamos oferecer-nos um momento para, por uns minutos, não pensarmos que anda por aí o monstro assustador Covid a assombrar as nossas vidas? Acreditem, sei bem como é difícil, mas especialmente agora, nesta fase tão exigente para a humanidade, vamos fortalecer-nos e alinharmo-nos com o planeta e com todas as rodas e ciclos da Terra?  

Recuando uns séculos e viajando até à Irlanda, descobrimos que o Halloween teve aqui a sua origem. Na antiga tradição celta, no final de Outubro celebrava-se o Samhain que significa “fim do Verão” em irlandês antigo. O Samhain marca o fim das colheitas e o início da metade mais fria e escura do ano.

Na tradição Celta acreditava-se que estes dias eram um momento de transição, onde se esbatiam as barreiras entre o mundo físico e o mundo espiritual permitindo a comunicação entre os dois mundos, criando-se um portal que era aberto na noite de 31 de Outubro.

No Samhain o fogo simboliza a luz, acendendo-se fogueiras nas casas, as quais eram deixadas a arder enquanto as colheitas eram feitas. Celebrava-se ainda a luz numa grande roda com uma grande fogueira no centro e que simbolizava o sol. Acreditavam que esta luz os protegeria durante a noite mágica de 31 e durante os próximos meses escuros.  Mais tarde começou-se a acender velas, colocando-as dentro de abóboras (simbolizando as colheitas) para proteger e iluminar as casas.

Com a chegada do Cristianismo nas comunidades pagãs, os líderes da Igreja tentaram transformar o Samhain numa celebração cristã. A primeira tentativa foi do Papa Bonifácio no século V que mudou a celebração para 13 de Maio e especificou-o como um dia de celebração de santos e mártires. No entanto, os festivais do fogo do final de Outubro não terminaram com este decreto e no século IX, o Papa Gregório voltou a mudar esta celebração para a época dos festivais do fogo, mas declarou-a como Dia de Todos os Santos a 1 de Novembro e o Dia dos Fieis Defuntos a 2 de Novembro.

Nenhum dos novos feriados eliminou os aspectos pagãos da celebração. O dia 31 de Outubro ficou conhecido como All Hallows Eve, ou Halloween, e continha muitas das práticas pagãs tradicionais antes de ser adotado nos Estados Unidos no século XIX por imigrantes irlandeses que levaram as suas tradições através do oceano.

Mesmo que inconscientemente, cada um de nós traz consigo séculos de tradições  que estão enraizadas culturalmente. Tal como para a comunidade celta, também em Portugal esta é uma altura em que estas realidades “opostas” , vida e morte, se cruzam e onde homenageamos os “nossos” que já não vivem connosco nesta dimensão.

Todos os anos, nesta época, somos confrontados com a sombra, com a perda, com os dias mais escuros.  Vamos olhar e aceitar as nossas próprias sombras, defeitos e medos, para enfrentar os nossos esqueletos, monstros e bruxas que sobrevoam o nosso inconsciente. Vamos mergulhar nas nossoa mágoas e dores mais escondidas. Vamos abraçar este nosso cantinho mais escuro, aceitar, perdoar e transformá-lo num lugar mais luminoso. Mais uma vez, assim como no post anterior, volto a falar em renascimento, em abraçar a mudança e as transformações necessárias para uma vida mais plena e feliz.

É irónico falar de recolhimento neste Outono de 2020, quando estamos tão cansados da palavra confinamento. Mas a Natureza e os seus sábios ciclos lembram-nos que é mesmo hora para nos recolhermos no aconchego das nossas casas, acendermos as nossas fogueiras e começarmos os nossos rituais para o Inverno que se aproxima. Mais do que nunca, nós e a Terra precisamos deste recolhimento nestes meses mais frios e escuros de 2020. Independentemente do resguardo pedido pela ameaça Covid, o nosso planeta agradece quando a humanidade abranda o seu ritmo alucinante. Repararam nas noticias e imagens da Terra quando há uns meses todos fomos forçados a ficarmos fechados em casa? As florestas respiraram mais livremente, os mares e rios ficaram mais transparentes e os níveis de poluição desceram.

Que pessoas queremos ser quando este Inverno acabar e quando esta pandemia tiver um fim? Se nos recolhermos um pouco mais nestes meses de menos sol, quem sabe se na tentativa de cada um se curar, se proteger, se reconectar, a cura se estenderá à Humanidade e à Terra?

Assim, como os nossos ancestrais faziam a partir de Novembro, vamos nós também aceitar que somos regidos por uma lei suprema, a lei da Mãe Terra e dos seus ciclos naturais. Vamos acender as nossas fogueiras, alimentá-las de esperança e aproveitar este tempo para ,  rituais de introspecção, de cura,  de purificação, de libertação e de renovação.

Construam as vossas abóboras lanternas! Cá em casa já fizemos a nossa luminosa abóbora, se passarem cá por perto poderão vê-la acesa na nossa varanda.

Entretanto, nestes próximos dias, honremos os nossos ancestrais, a nossa linhagem, honremos a luz e honremos a VIDA!

Acreditando que a música é a via de acesso mais rápida para chegarmos à nossa mente e ao nosso coração, deixo-vos aqui um breve filme para juntos, com as minhas imagens e os meus sons (e desta maravilhosa sonata de Domenico Scarlatti), celebrarmos mais uma volta da roda da natureza.