Musicoterapia e os músicos
Musicoterapia e os músicos
Este mês de Janeiro os meus “sons de cura” estiveram focados nos músicos e no palco. Parece um contra-senso falar em palco numa fase em que os palcos nos foram fechados. Mas talvez precisamente devido a este hiato, esta “pausa”entre a vida normal que conhecíamos e a vida normal que voltará, os músicos tenham conseguido encontrar um momento para se contemplarem e resgatarem. E alguns responderam ao “chamado” e iniciaram uma maravilhosa viagem comigo, a minha primeira formação online em Musicoterapia e Performance. Estou verdadeiramente grata por poder estar a trabalhar com os meus colegas músicos e por tanto que vou também recebendo com esta partilha.
Assim, no meu artigo deste mês quero partilhar convosco um bocadinho sobre a minha visão sobre a musicoterapia, os músicos e as suas “vozes” inconscientes que de repente acordam no palco. Vou falar-vos também de algo que infelizmente ainda é um tabu dentro desta classe profissional: ansiedade em palco. Assumir que o palco pode ser assustador demonstra fraqueza, e há que saber esconder isso muito bem, de nós e dos outros, senão ainda acham que não somos suficientemente bons músicos. Hoje digo-vos, ainda não conheci ninguém que não sentisse frio na barriga antes de algum concerto numa determinada altura da sua vida. E sentir alguma ansiedade faz parte de todo o processo, é algo natural, mas devemos estar atentos ao momento em que a ansiedade se torna maior do que o próprio músico e procurar ajuda nesse momento.
Desde o primeiro olhar, desde a experiência da primeira frase, até à performance pública de uma obra, é exigido ao musico uma complexa e profunda entrega física, intelectual e emocional. A técnica instrumental requer um treino físico diário, equiparando-se ao trabalho de um bailarino ou atleta de alta competição. Contudo, nesta viagem de criação de um sentido para os sons, tão intenso como o treino físico será o trabalho emocional.
Durante a exploração emocional de uma obra, durante a criação da narrativa musical, o intérprete encarna personagens, mergulhando no mais profundo lugar da sua alma para integrar e contar uma história sem palavras. Apenas através do som deverá conseguir emocionar-se e comover plateias.
A emoção viaja entre o consciente e o inconsciente, funcionando este como um “armazém” onde vão sendo depositadas as experiências e vivências ao longo da vida. Certas memórias poderão ter ficado bloqueadas nesse repositório, mas alguns estímulos e emoções poderão despertá-las. A música incide diretamente no sistema nervoso, originando múltiplas reações físicas. O palco, lugar de profundo trabalho emocional, poderá ser o local onde estas memórias são acordadas, podendo trazer à luz sensações do passado, que, frequentemente, surgem acompanhadas de ansiedade. Possivelmente, o intérprete não conseguirá reconhecer a causa deste desconforto.
Ao longo da sua preparação o intérprete investe muito tempo e rigor na preparação de uma obra. Contudo, enquanto pessoa que atravessa um palco e expõe as suas emoções perante uma plateia, raramente há uma preparação integral do seu ser. O estudo e treino do músico intérprete é uma experiência solitária. Um dos principais desafios da performance pública reside nesta antítese: o estudo e preparação de uma obra durante meses num contexto de isolamento e a sua apresentação pública. O intérprete treina e prepara as suas competências de interpretação, no entanto, a partilha desta interpretação com outras pessoas apenas é vivida pela primeira vez quando apresenta a obra em concerto.
Por outro lado, o alto nível de concentração necessário para um concerto pode facilmente induzir ansiedade num músico e debilitar a sua performance, gerando consequentemente frustração e, indo mais além, causar um efeito traumático, resultando em pânico de palco. Um intérprete é submetido durante o seu percurso a muitas audições, concertos, concursos, onde normalmente é necessário provar a sua qualidade em poucos minutos, estando constantemente sujeito a um elevado grau de pressão, mesmo que até inconscientemente. A performance musical é de certo modo algo abstrato que exige do intérprete um profundo conhecimento da obra mas também um profundo conhecimento de si próprio enquanto ser.
Durante um concerto, existe uma interação entre intérprete e público que é o resultado de uma longa preparação anterior. O músico e intérprete, percorre um intenso caminho em busca da perfeição, por vezes como que numa tentativa inconsciente de alcançar o divino durante a performance. Raramente se consegue atingir este estado quase sobrenatural, como que num estado quase alterado de consciência. Porém, quando isto acontece, quem presencia esta experiência pode relatar que viveu algo etéreo. Alguns poderão justificar o fenómeno como um momento de profunda empatia entre compositor, performer e público. A verdade é que crentes e não crentes, todos sentem que vivenciaram algo de “sagrado” e sublime: emoção no seu estado mais puro. Sons que cada um leva para dentro de si, e sem qualquer guião, podendo chegar até à história emocional do próprio intérprete e consequentemente, à história emocional de cada ouvinte.
Esta sinergia só é possível quando a entrega emocional é plena, sem condicionantes que inibam o performer. Quando a intenção emocional não está presente, apenas estaremos perante incríveis malabarismos técnicos ou concertos agradáveis, mas que não deixam marcas na memória do público. Aqui, o músico não conseguiu atingir o já referido estado quase alterado de consciência e de emoção pura, falhando o seu propósito. O “resultado artístico” não foi conseguido. A falta de domínio emocional pode ser muitas vezes apontada como a causa desta falha.
O músico só tem uma possibilidade de transmitir a sua arte no momento presente. Sempre que o intérprete é invadido por um pensamento que o distraia da obra e da narrativa musical (centrando a sua atenção no público ou em pensamentos que lhe tiram o foco), então significa que nesse exato momento não estará a interpretar nem a atuar enquanto artista. É um facto que nem todos os artistas poderão comunicar com o público tão estreitamente. Sabe-se também que muitos apenas não atingem esta intensidade na performance devido a restrições psicológicas (como medo de falhar a perfeição e pânico de palco), que se traduzem em sintomas físicos que perturbam a sua performance.
Pânico de palco não é apenas algum nervosismo antes de um concerto, é algo mais grave e que prejudica profundamente a realização artística do músico. Um moderado nível de ansiedade é considerado normal, o problema surge quando esta ansiedade e os sintomas decorrentes desta condicionam negativamente a performance. A principal causa de ansiedade no intérprete é a sua autocrítica e a acumulação de “vozes” negativas enraizadas ao longo de vários anos de estudo. São memórias de críticas de professores, pais, colegas e outras situações traumáticas eventualmente nem relacionadas com o percurso musical. Em palco, estas “vozes” viajam do inconsciente para o consciente, originando uma resposta de lutar ou ceder a estas críticas. Compreender a origem destes pensamentos e “vozes” negativas permitirá ao músico fortalecer e alterar os seus pensamentos.
O próprio trabalho artístico de um músico pode abrir uma porta até ao inconsciente (memórias perdidas, imagens e estados emocionais do passado). Trabalhar com música permite que o corpo mantenha um contacto muito próximo com o inconsciente. Eventualmente, apenas a música terá o poder de imitar e de reproduzir as emoções diretamente. Existindo para além das palavras, a música reproduz e materializa o intangível. Neste âmbito, a musicoterapia poderá ser o veículo mais imediato no que diz respeito a técnicas e terapias de controle da ansiedade em palco.
A música pode ser a representação mais pura das emoções. Como linguagem não verbal, a subjetividade da música encontra um paralelo com a subjetividade das emoções. É esta subjetividade de conjunto de informações apenas sonoras, sem imagens e sem palavras, que faz com que a música possa ser a linguagem mais próxima do “sentir”. A música pode ser uma via de acesso ao plano inconsciente da mente. Consequentemente, com o devido treino e acompanhamento profissional, o músico poderá conseguir manipular as suas reações biológicas através do controle emocional e obter maior sucesso durante a performance, possibilitando que o público também percecione a obra e a narrativa musical e emocional mais eficazmente.
A própria música poderá servir de resgate para os intérpretes para os quais o palco traz à superfície toda a bagagem emocional escondida. A música e a sua profunda ligação às emoções poderão ser uma ferramenta no controle destes medos e traumas que ganham vida durante a performance pública.
Poderão os músicos reinventarem-se através da música enquanto terapia e assim controlar as suas respostas biológicas e psicológicas? Poderá o intérprete com a ajuda da própria música libertar-se e expressar as suas emoções integralmente de modo a viver o palco e a performance saudavelmente e em pleno?
Se os músicos vivenciam a música de um modo ainda mais visceral do que os não músicos, talvez a própria música possa ser o caminho mais direto para os trazer de volta às suas emoções.